Anemia Hemolítica Autoimune felina

contei aqui como foi viajar com os gatos para o exterior e quais são os requisitos necessários, mas um dos tópicos precisava de um post único: o dia que a Lexie quase morreu por causa de uma vacina.

AVISO: O post será imenso (mesmo eu nem tendo abordado todos os detalhes da situação) e demorou meses para ser feito, por ser um assunto delicado que me traz péssimas lembranças e também pela situação ser recorrente – a Lexie ainda está em tratamento. Entretanto, julgo as informações extremamente importantes para Crazy Cat People e amantes de bichinhos no geral, para vocês não passarem pelo mesmo sofrimento que nós passamos.

Uma das exigências para entrar com animais na União Europeia é estar com a vacina anti-rábica em dia e ter um exame comprovando que o bichinho tem anticorpos suficientes contra a doença. No final de Agosto/13 começamos o processo de microchipar e vacinar os gatinhos e estava indo tudo bem – as vacinas eram de um laboratório reconhecido e estavam na validade, assim como o microchip. Seguiu assim, tudo tranquilo, até pouco mais de um mês da aplicação da vacina.

Lexie

Nossa gordinha, antes de adoecer

Acordamos em um domingo, exatamente dia 6 de outubro, com uma Lexie amuada, visivelmente mais magra, sem apetite e totalmente apática. Pensamos que poderia ser um resfriado e decidimos esperar um tempo antes de irmos ao médico para ver se ela se animava um pouco e comia algo. Nada aconteceu, então à tarde a levamos em um hospital veterinário na Rebouças e ficamos exatamente uma hora esperando, sem sinal algum de atendimento próximo – e assim que ouvimos que um animal tinha falecido minutos antes, decidimos levá-la ao hospital veterinário perto de casa.

Eu sei, você deve estar pensando “mas porque vocês não foram nesse lugar perto de casa de uma vez?”, e eu explico: alguns meses antes levamos um dos gatos lá e recebemos um diagnóstico horrível, de uma doença fatal chamada PIF, totalmente precipitado, sem o menor tato da veterinária responsável e sem ao menos realizarem exames ou investigarem – e o diagnóstico estava errado. Isso nos causou um sofrimento profundo, desnecessário e um nível de ansiedade que eu nem consigo explicar. Por este motivo, não queríamos voltar lá. Mas como era uma emergência, voltamos.

Fomos imediatamente atendidos por uma veterinária atenciosa que ficou chocada com a brancura das gengivas e do nariz da Lexie; pediu um exame de sangue, que foi realizado no próprio hospital. O resultado foi ainda mais alarmante: a taxa de hematócritos (glóbulos vermelhos) no sangue dela era de 8%. O normal é entre 25% e 45%. Ela estava com uma anemia profunda e precisava de uma transfusão de sangue imediatamente.

Explicaram que, para uma transfusão, o gato doador tem que ser saudável, com pelo menos 4,5kg (acima de 5kg preferível), sem acesso à rua e sem doenças diagnosticadas (FIV/FELV/PIF) ou que não tivesse tido contato com essas doenças. Qualquer problema desses pode ser fatal para o gato receptor. Voltamos para casa correndo e pegamos o Jamie, nosso filhote mais gordinho, para ser o doador da Lexie.

Jamie cuidando da Lexie quando ela foi esterilizada, em 2012

Jamie cuidando da Lexie quando ela foi esterilizada, em 2012

Antes da transfusão, fizeram um exame de sangue no Jamie para saber se o sangue dele seria compatível, e assim que o resultado saiu começaram a preparação. O gato doador recebe uma sedação leve apenas para que fique relaxado durante a extração do sangue, que é depositado em uma bolsinha e, em seguida, levado para o gato receptor – esse recebe o sangue através de um acesso na patinha. Como a transfusão demora cerca de 2h, fomos instruídos a ir pra casa e voltar depois desse período. Quando retornamos, avisaram que a Lexie teria que ficar internada em observação até que se recuperasse o suficiente, e no dia seguinte realizariam novos exames para ver se a transfusão ajudou. Choramos, MUITO. A sensação de ver doente um bichinho que você considera e cuida como um filho é horrível, especialmente sem saber o que ele tem.

No dia seguinte fomos visitá-la e saber como estavam as coisas: a taxa de hematócritos subiu para 13%, ainda muito abaixo do aceitável. Até então, ninguém sabia que o que tinha acontecido para chegar nesse ponto. A hipótese inicial era Hemobartonelose, uma doença causada por uma bactéria transmitida através de pulgas – o que parecia improvável, já que nenhum dos nossos gatos teve infestação. Ela precisou continuar internada por uma semana enquanto realizavam vários exames e testavam quais medicamentos poderiam ajudá-la.

Lex-Hospital

Sendo fofa até no hospital :~

Nesse período, administraram sete medicamentos diferentes (entre eles um antibiótico para combater a hipótese da Hemobartonelose, que se provou ineficiente), realizaram hemogramas completos diariamente, ultrassom para investigar possíveis tumores (que não foram localizados), e a taxa de hematócritos flutuou entre 13% e 15%. Solicitaram também um mielograma, que consiste na punção do líquido da medula para investigar o funcionamento do órgão e a possibilidade de ser leucemia.

Como a contagem de glóbulos vermelhos continuava muito baixa e o mielograma é um exame delicado, que requer sedação, ela precisou de outra transfusão – e não poderia ser com o mesmo gato doador. Dessa vez, quem salvou a vida da pequena foram a Pancinha e a Fernanda Abreu, que doaram seu tempo e seu amor para ajudar nossa família. Serei eternamente grata a ambas por fazerem parte dessa história. ❤

E adivinha qual foi o resultado? Isso mesmo, inconclusivo. Por ser um exame arriscado para a Lexie, optamos por não refazê-lo. A veterinária responsável pelo caso no hospital veterinário entrou em contato com uma patologista e pediu uma segunda opinião sobre o exame, e aceitamos sua opinião de que nada indicava uma leucemia nos dados do resultado.

Neste ponto, constataram apenas que o organismo dela estava atacando e destruindo os glóbulos vermelhos – mas sem motivo aparente. Com o quadro clínico já estável – e a contagem de hematócritos por volta de 15% e 20% – a gatinha recebeu alta para continuar o tratamento (com os sete remédios) em casa. Um desses remédios, utilizado em pacientes humanos com leucemia, era de aplicação subcutânea e exigia que voltássemos com ela ao hospital 3x por semana para receber essa aplicação.

Com a pequena em casa e o coração um pouco mais aliviado, seguimos o conselho da amiga Lu Freitas e marcamos uma consulta na VetMasters com o Dr. Archivaldo, especialista em felinos e unanimidade no assunto, no comecinho de novembro.

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Merecida soneca em casa quando voltou da internação <3

Entrei no consultório, sentei, respirei fundo e contei a epopéia da Lexie no último mês. Todos os remédios, sintomas, exames, taxas, diagnósticos. Tudo. E em 15 minutos de conversa, o Dr. Valdo fez a pergunta que matou todo o mistério: “ela foi vacinada recentemente?”

Serendipidade é um termo excelente para explicar o que aconteceu na minha mente no momento que ele fez essa pergunta. Sim, ela havia tomado vacina 5 semanas antes de tudo isso acontecer. E muito provavelmente foi isso o que a deixou doente: uma reação à vacina contra raiva, conhecida como Anemia Hemolítica Autoimune Pós-Vacinal.

A Anemia Hemolítica Autoimune é uma doença potencialmente fatal onde o sistema imunológico do animal destrói seus próprios glóbulos vermelhos. Os anticorpos produzidos pelo organismo para combater doenças “se revoltam”, começam a perseguir as células vermelhas do sangue e destruí-las, causando uma série de complicações.

Há alguns gatilhos conhecidos para que o animal desenvolva a Anemia Hemolítica Autoimune, e um deles é a vacinação. Ao injetar agentes infecciosos no organismo (que é o que acontece ao vacinar), o sistema imunológico pode ficar superestimulado e ter essa reação. Infelizmente, isso é mais comum do que a gente imagina ou sequer fica sabendo.

Enfim diagnosticada, o tratamento caiu de 7 para apenas 2 remédios imunossupressores para refrear a destruição das células (prednisolona e leukeran. Atenção: esta informação é apenas para referência e DEVE ser discutida com um veterinário antes de iniciar qualquer tratamento. JAMAIS dê esses remédios ao seu gato ou cão por conta própria, eles são extremamente fortes e o leukeran exige, inclusive, manuseio extremamente delicado). Em dezembro, um mês após iniciar esse tratamento, a taxa dos hematócritos já subiu para surpreendentes 30%. Num segundo exame, realizado algumas semanas depois, a taxa estava em 38%.

Já encontramos uma veterinária aqui em Amsterdam que está familiarizada com casos similares e começamos a reduzir a dosagem dos remédios – que, obviamente, têm seus efeitos colaterais quando usados continuamente por um longo período. A ideia é ir reduzindo a cada 2 semanas e ir fazendo exames para saber se o organismo está conseguindo produzir e manter novas células vermelhas. Já reduzimos duas medidas e a pequena continua firme e forte, apesar de ter emagrecido bastante (um dos efeitos colaterais das medicações).

Ex-Gordinha-Agora-Magrelinha tomando solzinho na janela em Amsterdam

Tomando solzinho na janela em Amsterdam, bem mais magrinha

O tratamento ainda está longe de acabar, e talvez nem acabe. Talvez essa condição não se reverta e ela precise tomar medicamentos pro resto da vida dela, mas não temos como prever isso no momento. Ah, e ela também nunca mais pode ser vacinada – qualquer aplicação seria fatal. Acho que dá pra ter uma noção de quanto dói o coração acordar todos os dias e ver seu pet fragilizado, sem saber se ela vai querer comer ou não, se está bem ou não…

Quero deixar bem claro que o intuito desse texto é compartilhar com vocês uma experiência pessoal, para que fiquem sempre atentos aos seus bichinhos e sintomas estranhos que eles possam apresentar. Foi extremamente difícil encontrar informações sobre essa condição, então acredito que o post possa ajudar futuros protetores caso se encontrem em uma situação semelhante. Não estou aqui falando “parem de vacinar seus bichos”, pois não cabe a mim. Mas definitivamente esse sofrimento todo que passamos com a Lexie nos fez pensar se é realmente necessário vacinar anualmente contra a raiva 4 gatos que nunca saem de casa e não têm contato com outros animais. Nós decidimos não vacinar mais – e sei que alguns amigos optaram dar apenas as primeiras doses da vacinas (em gatos de apartamento) e os animais nunca tiveram problemas por causa disso.

O site Cachorro Verde tem algumas matérias excelente sobre esse assunto, que recomendo a leitura. E neste link você encontra mais detalhes sobre essa doença, seu diagnóstico, causas e tratamento.

Anemia Hemolítica Autoimune é uma doença potencialmente fatal (e sim, a Lexie teria falecido se não tivesse sido tratada à tempo), então não hesite em procurar um especialista caso perceba qualquer alteração no comportamento e rotina de seus pets.

Nós descobrimos do pior jeito possível o que é a AHAI (ou AIHA, em inglês), mas espero poder ajudar algumas pessoas a já saberem do que se trata e como lidar caso, por uma infelicidade, aconteça. Está passando pelo mesmo e quer falar sobre? Mande um email para hello[at]paulaabrahao.com.br.

[ATUALIZAÇÃO] Em junho/2014 a doença da Lexie entrou em remissão, ou seja: seu organismo voltou a funcionar normalmente e ela não precisa mais da ajuda de remédios para manter as taxas de hematócritos. Não podemos dizer que ela está curada, já que é uma doença autoimune e pode voltar a se manifestar a qualquer momento, mas já estamos muito satisfeitos com essa pequena conquista. <3

[ATUALIZAÇÃO 2015] Após exatamente 1 ano de remissão, em junho/15, a anemia voltou a se manifestar. Suspeitei que tinha algo errado quando vi a Lexie tentando comer areia da caixinha, levei ao vet e descobrimos que a taxa de hematócritos estava super baixa (13%). Ela precisou fazer uma transfusão (a terceira da vida, tadinha) e mais um ultra pra confirmar que não era nenhum tumor ou problema renal/intestinal, e então retomamos o tratamento. Em agosto, a taxa de HTs já era de 43% e começamos a reduzir as doses de novo.

[ATUALIZAÇÃO 2019] Após um bom tempo de tratamento, a Lexie entrou em remissão novamente em meados de 2017 e está super saudável e gorduchinha desde então. Fazemos coleta de sangue para checar os HTs a cada 3-4 meses, para acompanhar as flutuações das taxas, e um exame de sangue complexo 2x ao ano para checar os rins (acompanhamento de danos aos rins devido aos anos que ela passou tomando medicações pesadas).